Ontem
foi o dia onde imperou o clima de finalização, pois estávamos apresentando pela
ultima vez nossa versão de “O Navio Negreiro”, do Castro Alves com os alunos do
Krys e essa me parece a oportunidade perfeita para falar sobre minha relação
com esse poema. Desde quando pensei em criar um blog, ficava procurando tópicos
que poderiam me valer nessa empreitada e sempre pensava em escrever sobre isso,
mas fiquei protelando essa historia toda... pois bem, é chegada a hora.
Minha
amiga adorada e professora, a Juca, que me colocou nessa! Vendo que eu gostava
tanto do Castro Alves, me pediu para que encenasse pra ela o poema... Eu fiz à
egípcia e sorri sem graça, pois conhecia o poema sabia que ele era enooooorme !
Mas ficou a dica... Decorei outro poema, mas não valeu... Era da fase ultrarromântica dele e a emoção do
amor não me caia tão bem assim na época. Mesmo ficando legal, pois era uma das
primeiras vezes que fazia uma peça sozinho (coisa q veio a se tornar uma
característica minha)! Quando eu, na primeira tentativa frustrada de fuga, sai
da Colônia Vitória, Entre Rios (a mesopotâmia que rima jordão com pinhão), para
morar com minha mãe justamente no
Jordão, foi quando tudo começou pra valer.
Bateu
uma saudade tão grande do meu povo, doía no peito (eu ouvindo a Zélia Duncan
cantar que nunca estava lá e que sentir era uma prisão e uma saída), nos finais
do dia eu ficava triste por não estar com os meus amigos de verdade (que o são
até hoje, diga-se de passagem) e para acalentar essa minha dor decidi ocupar a
minha mente com alguma coisa: algo épico, que me fizesse sentir, de certa forma,
grandioso, que fosse algo para ser lembrado com carinho... Da mesma forma como
eu processava minhas lembranças naquele momento: a flor da pele! Lembrei-me da
Juquinha e mais que depressa peguei minha antiga coletânea de poemas do bardo
baiano e tracei um plano de meta para decorar aquele poema gigantesco, com
palavras dificílimas, frases rebuscadas que me confundiam, mas misteriosamente
me encantavam! Era isso! Ia decorar o poema em um tempo recorde e quando visse
minha amiga, apresentaria para ela, nem que fosse na casa dela mesmo!
Como
o poema é dividido em 6 partes, pensei em decorar uma parte por dia e em uma
semana estar consumado o prodígio! E
assim o fiz! Ficava embaixo dos pinheiros que havia em nosso pátio naquela
época e, munido de dicionário, queria entender cada palavra dali, falar como se
aquelas palavras saíssem da minha cabeça naquele momento... Queria que as rimas
fossem esquecidas por quem me ouvisse e que aquela magia que eu outrora senti-
entendendo o poema sem entendê-lo em seu sentido concreto, mas no abstrato-
também fosse experimentada pelas pessoas. Queria que a criança do jardim de
infância, o adolescente pobre, a senhora analfabeta, a executiva exata, o
literato humano, o juiz, o ladrão, o policial enfim, todos entendessem e
amassem , embarcassem junto comigo no navio! Que todos sentissem o doce ar que
a brisa trazia, ouvissem a musica suave que ao longe soava ao mesmo tempo que
ouvissem o tinir de ferros, o chicote que estalava, o gemido e o canto
misturados, o baque do corpo morto no mar, vessem a dança horrenda da corte que
dançava ao som do açoite!
Quando
decorei tudo, resolvi ir do Jordão até a Colônia a pé, por uma caminho
alternativo que passava pela casa da minha avó, e nas 4 ou 5 horas de caminhada
nas solitárias ruas “dos queimado” eu bradaria aos espaços o grito de
indignação de Castro Alves. Fiz isso e quase morri de tanto caminhar! Mas deu
resultado! Sem modéstia, que não é meu forte marcisita, estava me sentindo o
próprio poeta romântico a gritar o seu poema-protesto em praça publica no 7 de
setembro de 1868! Falei para Juca, que me convidou para apresentar em uma noite
onde os alunos dela iam exaltar os poetas românticos, como jovens sonhadores em tavernas escuras! E pela
rebeldia romântica, que eu sempre gostei, topei e estreei minha performance! As
pessoas gostaram! Mas eu queria mais! Inscrevi-me para um evento que tinha na
época, conhecido como “noite dos talentos” e com um banquinho, em território
dos ricos suábios de olhos azuis, gritei os versos que dediquei a minha Juca, a
negra sobrevivente naquele mar de preconceitos em que vivíamos! Acho que essa
foi primeira vez que senti que aquela encenação iria fazer a diferença na minha
vida!
Passado
algum tempo, eu já voltado para morar na Colônia com minha vó, fui cercado de
um sentimento horrível de rejeição (que agora não vem ao caso relatar, mas
talvez na próxima) que me repelia pra fora daquele lugar! Como se algo me
dissesse, da pior forma possível que ali estava minha raiz, mas não era lugar
para eu ficar eternamente e na minha despedida, no fim da disciplina de Historia,
com a professora mais meiga do mundo a Vanderléa, chamei a Bolinho para me dirigir
e o Purga pra fazer a sonoplastia do navio que iria me tirar dali! Em
contrapartida a professora convidou a direção do CEEBJA pra assistir e lá
estava Neuzinha, Graça, Papi e companhia que me viram e me pegaram pelo braço
me levando pra Guarapuava pra me apresentar em um evento deles... E lá conheci
a mais Bela do universo, conheci a Adriana também... E um capítulo lindo da
minha historia se iniciou!
Foram
milhões de apresentações de todos os jeitos: só na sala de aula da Bela foram
umas cem vezes (até hoje eu me apresento na sala de aula dela!), na Unicentro também
um sem numero de vezes: com iluminação, sem iluminação, maquiado, de cara
limpa, com música e movimentos, sem isso tudo; na sala de aula, no corredor, em
todas as escolas que me convidavam, para professores,
para alunos, para amigos em uma roda de entorpecidos, para meus amigos caretas,
na praça, nos ginásios de esportes, na rua, em vídeo conferencia, pela internet,
gritando, sussurrando, dançando, estático... E lá se vai a lista gigantesca!
Meus
amigos mais antigos chegam a tirar sarro de mim por causa disso! Esse poema se
tornou o meu cartão de visita! E quando eu saio da minha zona de conforto e
chego a Curitiba, é nesse navio que sou convidado a embarcar! O Krysthian
Ratier, o meu artista preferido, me convida para me apresentar ao som dos
tambores dos alunos dele! Mais uma vez me sinto como aquele menino memorizando
texto entre os pinheiros da casa de minha mãe, como aquele que subiu pra
dignificar aqueles que, como ele, viviam entre rios de preconceitos, como
aquele cara de cabelos e unhas imensas que agarrava com as duas mãos as
oportunidades que lhe apresentavam, ou ainda como aquele que caminhava no sol
daquela estrada de chão a falar o texto quilométrico para a plateia imaginária
que o ouvia atenta!
Sou toda essa galera
junta a remar e a se esforçando para tirar emoções de quem estiver disponível
para o encanto da arte! Entre as minhas nuvens também dorme o albatroz, a águia
do oceano, e para ele eu sempre imploro para suspender e me dar suas asas, para
que eu possa ser todos esses seres que me edificam e me tornam, bem ou mau,
esse que sou! Levantai-vos heróis do novo mundo! Pois eu já estou de pé! Terminando
esse ano com o pensamento real de que começar com poesia é a melhor forma de
mostrar o quanto estamos preparados para o novo, pois ela por si só nos
renova... Mesmo uma temática de dor, no caso do poema de Castro Alves, pode
transbordar a magia que só a arte pode nos dar: a de que estamos vivos e
repletos dos mais inusitados sentidos